Meu interesse em história e cultura japonesa meio que vem em duas frentes -- rotularei arbitráriamente de "cultural" e "política".
Na frente cultural, eu sempre gostei bastante de música, jogos e literatura japonesa, e sempre tive alguma fascinação pela subcultura otaku associada com esses produtos culturais. A prevalência de produtos doujin é um dos aspectos que eu acho mais interessantes: a produção de jogos, música, mangá etc. independentes é enorme, e a produção de criações secundárias (e.g. fanfiction, fan music etc) também é gigante, graças à abordagem mais leve em relação a copyright de propriedades populares como Fate ou Touhou. Entrando mais no tópico da página, o campo acadêmico de estudos otaku também é bem rico, e pode servir de base para a análise de fandom no Ocidente. Livros como "Otaku: Japan's Database Animals" ou "Beautiful Fighting Girl" são bem aplicáveis para estudar fandom contemporânea.
O estudo de mídia japonesa também é interessante nos seus próprios termos para mim, obviamente. Análises anglófonas de textos japoneses costumam só referenciar outros autores anglófonos: isso é compreensível e até aceitável, mas a falta de vocabulário cultural muitas vezes gera análises superficiais. Podemos incorporar bastante Camus numa interpretação de algo como Chainsaw Man, mas também podemos incorporar Dazai; as tragédias no mangá refletem ansiedades sobre atiradores em massa, mas também reflete ansiedades sobre grupos como a Aum Shinrikyo, etcetera.
Na frente política, eu acho que a experiência japonesa é um objeto de estudo acadêmico interessante, principalmente numa perspectiva pós-colonial. Discussões não-acadêmicas atuais sobre orientalismo geralmente são sobre percepções orientalistas do leste asiático, mas os estereótipos orientalistas que associamos à cultura japonesa não foram só ocidentais: eles surgiram a partir de um trabalho conjunto entre potências coloniais ocidentais e as classes dominantes japonesas (também coloniais: vide Hokkaido, Ryukyu, Manchúria, China, Coréia, Filipinas...). Estereótipos ocidentais sobre a subserviência da mulher japonesa são em boa parte resultado de séculos de política estatal japonesa que manda mulheres serem "boas esposas e mães sábias"; estereótipos sobre o "espírito samurai" sacrificial japonês foram fomentados pelo império Showa pois geravam bom soldados (e, hoje em dia, geram bons trabalhadores); e muitos dos produtos culturais associados com a imagem "excêntrica" da cultura japonesa moderna fazem parte de políticas explícitas do governo japonês para amolecer a imagem pública do país. Essa colaboração entre elites domésticas e elites estrangeiras fica bem clara na experiência japonesa, e eu acho que nos força a fazer no mínimo uma leitura e aplicação mais cuidadosa do pós-colonialismo. De fato, críticas ao pós-colonialismo feitas por acadêmicos como o Vivek Chibber (que pesquisa a experiência indiana) miram justamente na tendência de alguns acadêmicos de ignorar relações de classe no âmbito doméstico de países (pós-)coloniais.
Essa página registra (ou "eventualmente registrará") alguns tópicos que eu tenho interesse relacionados à cultura japonesa, e as fontes que li para entendê-los. Não é uma lista exaustiva, mas talvez tenha algo aqui que é de interesse do leitor. Sinta-se livre para me mandar um email se você quiser conversar sobre algum tópico, pedir recomendações para a sua pesquisa pessoal, me recomendar fontes, etc.
Meus tópicos de interesse são:Coisas que eu ainda não sei onde colocar, basicamente. Eu gostaria de recomendar alguns livros com "o básico" necessário para ler obras sobre cultura japonesa, mas a única coisa que eu acho que talvez seria útil seria um resumo da história completa japonesa e eu não conheço nenhuma referência boa para isso. Se você conhece, me mande um email.
Media Theory in Japan (2017)
"Media Theory in Japan" é uma coletânea de ensaios editada por Marc Steinberg e Alexander Zahlten sobre análise midiática no Japão. Coletâneas de ensaios em geral são ótimas para adentrar um novo tópico: você consegue ter uma ideia da linha de pesquisa de todos os autores da coletânea, e quando há uma variedade de tópicos com certeza terá algum que te interessa, aí você pode só ler esses e deixar os outros para mais tarde. Esse livro é a prova disso: os tópicos dos ensaios são ecléticos, indo desde um ensaio do próprio Steinberg sobre publicidade (é sempre estranho ver pessoas falarem do Shigesato Itoi como um ótimo publicitário e não como o diretor de Earthbound) até um ensaio de Fabian Schafer que relê a filosofia que unifica a Escola de Kyoto como uma filosofia de mediação. Recomendo dar uma olhada no índice e ler os ensaios que você achar interessante.
Otaku: Japan's Database Animals (2001)
"Otaku: Japan's Database Animals", do Hiroki Azuma, deve ser um dos livros de análise midiática japonesa mais lidos no Ocidente e é uma obra fundamental da área. O argumento do livro, informado por filósofos pós-estruturalistas como Baudrillard, Deleuze e Lyotard, é que a cultura otaku dá valor em produtos culturais com base em como eles combinam elementos de um banco de dados (acho que mesmo em português eles falam database, mas eu me recuso) subjacente. O apelo de produtos de séries como Neon Genesis Evangelion (para a maioria das pessoas) não está numa temática ou num universo subjacente que legitima a existência do produto, mas sim em como esses produtos incorporam elementos do banco de dados mais amplo (personalidades -dere, estilos de roupa ou de cabelo, elementos de design dos robôs, apropriação de mitologia judeocristã, etc).
Em geral, o livro é de alta qualidade, curto, e é amplamente referenciado na análise midiática japonesa, então acho que vale a pena ler. Se você gostou dele, recomendo dar uma olhada na produção do Eiji Otsuka, que é muito referenciado no texto, e no The Language of New Media do Lev Manovich, que lida com pontos similares mas no contexto cultural ocidental.
Debating Otaku in Contemporary Japan (2015)
Outra coletânea de ensaios, editada por Patrick W. Galbraith, Thiam Huat Kam e Björn-Ole Kamm. Antes de entrar nos ensaios, o Patrick Galbraith é um escritor bem prolífico e acessível que discute cultura otaku: se você tem interesse mais direto em animanga, vá atrás dos livros dele. Esses ensaios fazem um panorama da história contemporânea do otaku, passando pelas décadas de 80, 90 e 00, mostrando como a percepção da subcultura mudou com o tempo na esfera social, cultural e até econômica.
"Shoujo" (少女, literalmente "pequena mulher") significa "menina" em japonês. (Se você acha isso auto-evidente, note que existem umas quatro palavras relativamente comuns que são razoáveis de traduzir para "menina".) Da introdução do Age of Shoujo, pela acadêmica Hiromi Tsuchiya Dollase (tradução minha, notas em []):
"Shoujo", indicando "menina adolescente", é um conceito moderno ["Japão moderno" é final do periodo Edo (1868) para frente]. O dicionário Daijirin define "shoujo" como "meninas entre 7 ou 8 até 15 ou 16 anos": isto é, em idade escolar. Contudo, como muitos devem concordar, idade não é de particular importância na definição do conceito. O termo "shoujo" deve ser entendido como um termo cultural, formado pelo intercâmbio entre política educacional moderna e cultura de consumo. No período pré-moderno, 少女 era lido como "otome", que só indicava "mulher não-casada". Quando uma mulher começava a menstruar, ela era vista como disponível para casamento. Mais tarde, com o crescimento da educação feminina no período Meiji, o termo "shojo" — mulheres jovens — se tornou o complemento de "shounen" (少年), para meninos jovens. A shoujo pode ser físicamente madura e reconhecida como capaz de reprodução durante esse período, mas ela é temporáriamente colocada no espaço escolar. Enquanto ela está nesse espaço, ela é livre de obrigações sociais, incluindo casamento. [...] Temporáriamente dispensada de obrigações sociais, a cultura permite que meninas abracem liberdade de normas de gênero também.Nesse sentido, a literatura shoujo servia como espaço tanto de crítica às expectativas sociais impostas à mulheres quanto de fantasia sobre relacionamentos ou situações que são incongruentes com pressões patriarcais. A percepção dessas narrativas como sendo imaturas permitia que elas lidem inclusive com tópicos tabu, como relacionamentos homossexuais.Essa cultura evoluiu com a história, impactando várias gerações de meninas. Novamente, da introdução do Age of Shoujo:
A noção de shoujo, que foi "descoberta" no começo do século XX com a introdução de educação feminina ocidental, evoluiu e diversificou em significado na cultura de consumo atual. Roupas e produtos com ilustrações e designs de Nakahara Jun'ichi são compradas até hoje por mulheres de todas as idades. A Ilha do Príncipe Eduardo no Canadá, um ponto turístico para fãs de "Anne de Green Gables", é ainda mais popular devido a "Hanako to An" (Hanako e Anne), um drama de televisão de 2014 da NHK. Uma tour de exibições de 2014 a 2016 da revista de mangá shoujo "Margaret", criada em 1963 pela Shueisha, foi um tremendo sucesso; mulheres jovens e velhas lotaram os locais. Esses fenômenos indicam que a imaginação shoujo cultivada em meninas continua nelas para sempre. A cultura shoujo serve como um universo importante que permite que meninas e mulheres explorem pensamentos e ideias que são alternativas, radicais, revolucionárias e divertidas. As narrativas de meninas, que constantemente apresentavam valores diferentes do convencional, influenciaram a cultura, arte e literatura de mulheres.Assim, a shoujo é uma parte integral da cultura de consumo atual, com os seus valores sendo refletidos em todas as esferas da cultura contemporânea japonesa, seja em autoras de prestígio internacional como Mieko Kawakami ou Yoshimoto Banana, ou em mangakas que avançaram o meio como Naoko Takeuchi ou Riyoko Ikeda.O foco do meu estudo é na literatura shoujo: eu não conheço muito sobre os primeiro boom de mangás shoujo no pós-guerra ou sobre o desenvolvimento do gênero da década de 70 para frente (eu já li mangás dos anos 70 em diante, naturalmente, só não conheço a história num contexto mais acadêmico). Seguem, então, as minhas recomendações:
Girl Reading Girl in Japan (2011)
"Girl Reading Girl in Japan" é uma coletânea de ensaios, editada por Tomoko Aoyama e Barbara Hartley, sobre as práticas de leitura de meninas no Japão, em particular as práticas de leitura de meninas que lêem (e escrevem) sobre (e para) outras meninas. A coletânea é dividida em três seções: a primeira foca em desenvolver uma genealogia tanto da literatura shoujo quanto da análise da literatura shoujo no Japão a partir do período Meiji; a segunda analisa a tensão entre a "menina leitora" e pressões sociais, tanto de fora da comunidade shoujo quanto de dentro; a terceira analisa sexualidade, discutindo a representação de meninas e de relacionamentos homosexuais masculinos na literatura shoujo e a representação de meninas na obra de Haruki Murakami, um autor homem popular; e a quarta analisa material visual e tridimensional, discutindo inspirações européias na estética de mangá shoujo, intertextualidade na forma de fanfiction da série "Harry Potter" e a representação da moda lolita no livro "Kamikaze Girls".
Novamente, eu sou um grande proponente de coletâneas de ensaios assim: elas são ótimas como introdução para um tópico. Nem todas as autoras nessa coletânea publicam exclusivamente sobre o tópico dos seus respectivos ensaios, mas ir atrás das acadêmicas e autoras que te interessaram seria um bom pontapé inicial para aprender mais sobre shoujo. Contudo, caso você prefira uma introdução mais linear, também tem o próximo livro, Age of Shoujo.
Age of Shoujo: The Emergence, Evolution, and Power of Japanese Girls' Magazine Fiction (2019)
"Age of Shoujo" é um livro escrito pela acadêmica Hiromi Tsuchiya Dollase que traça e analisa a história de revistas shoujo no século XX. Os primeiros quatro capítulos são dedicados ao período pré-Segunda Guerra: ela fala sobre o impacto de traduções iniciais de "Little Women" na nascente literatura shoujo e aí discute as revistas nas quais as pioneiras do gênero publicavam e como as suas histórias eram informadas por pressões sociais e por movimentos feministas da época. O quinto capítulo então fala sobre a mobilização dessas revistas para publicar propaganda de guerra, enquanto o sexto fala sobre revistas que surgiram no período da ocupação americana e sobre a incongruência entre as meninas leitoras (que abraçavam a cultura americana) e adultos escritores (que sentiam nostalgia pelo passado japonês). Os capítulos 7 e 8 então concluem com um panorama da literatura shoujo nos anos 80, representada pela revista Cobalt, e uma olhada na obra Ubazakari (姥ざかり), da autora Seiko Tanabe, que critica normas culturais japonesas pela perspectiva de uma protagonista idosa.
Esse livro é mais tradicional, fazendo um apanhado linear da história do gênero desde o começo do século XX até o final. Leitores que querem ter um panorama da literatura feminina como um todo talvez desejem ir atrás de referências sobre o período Heian (clássicos como Genji Monogatari e Makura no Soshi foram autorados por mulheres, Murasaki Shikibu e Sei Shonagon, junto com inúmeras outras obras do período) e sobre literatura feminina contemporânea (nomes como Banana Yoshimoto e Sayaka Murata conseguiram prestígio internacional).
O Japão atualmente é um país com uma população bem apatética quanto à política. Em termos de política eleitoral tradicional, ele é um país onde o voto não é compulsório, e mesmo dado isso a taxa de comparecimento eleitoral é baixa: na eleição de 2021, foi de 55.93%, caíndo para 36.50% entre pessoas de 20-29 anos. A diversidade de partidos políticos também é baixa: o LDP, partido de situação desde 1955, preza pela despolitização tanto do partido quanto da população, e partidos de oposição, mesmo em momentos de fraqueza do LDP, raramente conseguem consolidar mudanças. Contudo, pode-se argumentar que é comum que países de primeiro-mundo tenham uma política eleitoral similarmente mansa, mas compensada por movimentos populares fortes. Isso não é o caso no Japão: via de regra, quanto mais jovem a pessoa, menos fé ela tem na sua capacidade de mudar a sociedade via protestos ou ação direta, e afiliação com sindicatos e o movimento estudantil é baixa. Essa apatia é uma peteca constante na discussão do Japão e de mídia japonesa no Ocidente. Por um lado, otakus de direita amam ela e constantemente inventam novas razões pop-sociológicas para explicá-la, desde a relativa uniformidade étnica do país (e, portanto, ausência das etnias que o direitista médio considera danosas para a sociedade) até a (suposta) influência do Cristianismo. Esse tipo de argumento é tão prevalente que é comum brincar que "o Japão é como uma Wakanda para pessoas brancas": que, ao invés de se compremeter com um estudo sério da história e sociedade japonesa, otakus de direita só tratam o Japão como uma sociedade (supostamente) utópica, onde o povo todo pensa da mesma forma que eles e o governo implementa as políticas que eles acham boas.