Mudanças entre as edições de "A Crítica da Crítica Arte pela Arte da Arte Crítica"

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Todos já ouvimos falar do filme de 1927 que revolucionou a arte do cinema. Da época do cinema mudo, um dos mais caros e virtuosos trabalhos de ficção científica; o mais longo já feito. Bravo! Bravo! Parabéns ao esplendor de Metrópolis! Venham todos, saúdem o filme do futuro e sua cidade opulenta!
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Todos já ouvimos falar do filme de 1927 que revolucionou a arte do cinema. Da época do cinema mudo, um dos mais caros e virtuosos trabalhos de ficção científica; na época o mais longo já feito. Bravo! Bravo! Parabéns ao esplendor de Metrópolis! Venham todos, saúdem o filme do futuro e sua cidade opulenta!
  
 
O filme é um projeto conjunto do austríaco Fritz Lang e a alemã Thea von Harbou, casados. O filme é alemão. Fritz negava sua própria influência expressionista apesar de ter criado M — O Vampiro de Düsseldorf, marco expressionista, em 1931. Dois anos depois, uma carta chegava à residência Lang-von Harbou, enquanto produziam outro roteiro. A carta abala profundamente ambos, e Fritz vai passar uma temporada em Paris. No final de 1933, Hitler sobe ao poder na Alemanha. Fritz se divorcia e passa o resto da vida produzindo filmes em Hollywood. Alguns eram sobre a guerra.
 
O filme é um projeto conjunto do austríaco Fritz Lang e a alemã Thea von Harbou, casados. O filme é alemão. Fritz negava sua própria influência expressionista apesar de ter criado M — O Vampiro de Düsseldorf, marco expressionista, em 1931. Dois anos depois, uma carta chegava à residência Lang-von Harbou, enquanto produziam outro roteiro. A carta abala profundamente ambos, e Fritz vai passar uma temporada em Paris. No final de 1933, Hitler sobe ao poder na Alemanha. Fritz se divorcia e passa o resto da vida produzindo filmes em Hollywood. Alguns eram sobre a guerra.

Edição das 23h10min de 28 de dezembro de 2023

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A arte é crítica. Crítica pois representa a crise do nosso tempo, crítica como a situação é crítica.

A arte é crítica. Crítica pois coloca o dedo ou não nas feridas do nosso tempo, crítica como o senso é crítico.

A crítica, gênero literário, é sobretudo uma obra de transformação. Observa a crítica arte e transforma ela não somente em algo que representa seu tempo, como também em algo que trabalha em seu tempo.

A crítica da crítica arte pela arte da arte crítica.

Perspectiva

Algo importante de se pontuar, antes de qualquer crítica, é a perspectiva de onde parte o crítico. Assim como a tal "morte do autor" nada mais é que um mito conveniente, também o é a "morte do crítico". Quem diz que é um crítico sem ideologia está enganado ou enganando. Pois aqui apresento minha perspectiva como, antes de tudo, marxista-leninista, hegeliano, calcado na dialética do material, comunista. Queer, neurodivergente, árabe e pobre. Corinthiano.

Não apresento aqui tudo o que leio ou consumo, só as críticas, mas nas horas vagas aproveito boas fanfics de época.

Uma nota sobre a Pirataria

A pirataria individual não é nenhuma aventura revolucionária, não confere nenhuma quebra de sistema, a não ser àqueles que sonham molhado com ação direta. Acima da pirataria, se encontra a ética proletária, entre oprimidos do sistema. Piratear não é errado por ser pirataria -- essa tautologia não nos leva a lugar algum -- piratear não é metafisicamente nada, voltemos à materialidade.

Na materialidade, a pirataria não é uma coisa que acontece sem Estado -- é um entrave jurídico, criado pela Propriedade Intelectual, uma forma de Propriedade Privada, que imprime a uma ideia um dono. Isso não é dizer que a cópia e o plágio não são coisas; muito pelo contrário, são e seu efeito se credita na própria materialidade, mas não o são no âmbito do direito, e sim no âmbito da ética, que sobrepõe o conjunto do jurídico.

Nos regemos pela ética proletária, dialética e materialista. Então, cabe analisar como essas formas jurídicas de fato se suscitam dentro dessa ética. Dessa forma, conseguimos entender, por exemplo, como espalhar um pdf de um autor independente é antiético, mas o Sci-Hub é a empreitada mais importante da história da ciência. Cabe a nós observar quem são os piratas e quem são os produtores. Cabe a nós entender nossa solidariedade e nossa consciência de classe.

A arte não é produzida a um par de mãos. Até o capitalismo financeiro, ninguém nem sabia quem compunha as músicas que depois vieram a se chamar pop; até o capitalismo financeiro, ninguém tinha que pagar impostos a Shakespeare por produzir suas peças. O plágio existia antes disso e era condenado, com problemáticas. Mas a propriedade intelectual, a ideia de que um objeto artístico tem dono, essa é profundamente ocidental e profundamente financeira.

A produção que escapa desse centro já mostra a coletivização da arte — pense no pagode. Conhecemos os maiores nomes do pagode, mas quem me diz se X música clássica do pagode é do Revelação, do Exaltasamba ou do Soweto? Qualquer um pode fazer -- e mudar! -- Sonho Meu, mas nunca esqueceremos o nome de Dona Ivone Lara. Isso não é um apelo para ignorarmos nossos ancestrais criadores, e sim para que deixemos de conferir a eles uma propriedade que é de todos.

A propriedade intelectual, então, serve para manter o interesse dos ricos enquanto se veste de uma boa empreitada para todos os artistas. Na prática, na materialidade, vemos a torto e a direito grandes empresas roubando o trabalho de pequenos artistas, pois essas estão acima do direito e da ética -- visto a própria nova empreitada dos "revolucionários" da tecnologia, a IA gerativa, um simulacro da experiência humana que não é nem inteligente nem artificial -- enquanto as mesmas empresas impedem a produção artística transformadora dos produtores que ousarem se assemelhar aos seus produtos -- um dos projetos mais revolucionários do funk da atualidade, Sexta dos Crias, não está disponível no Spotify pela mesma lei de copyright que deveria protegê-lo, por usar samples.

A verdade é que a pirataria é, sobretudo, um entrave jurídico; a propriedade intelectual é, sobretudo, uma negação da coletividade da cultura humana. Nos guiemos pela ética em comunidade, e disso tiraremos as respostas materiais para o que é verdadeiramente antiético. Além do antiético, pirateemos.

Em luz da pirataria mas pelas mesmas razões jurídicas, não irei disponibilizar o material criticado aqui na wiki, mas quem quiser ele disponível, me procure.

Manifesto Pirata

Notícias de um jornal no futuro: “Um homem foi parado ontem na fronteira da Itália com a França, seu computador foi analisado e material pirata foi encontrado, a maioria softwares da Adobe e músicas dos Beatles. O homem foi preso em flagrante”

De um poema a uma droga, de um software a uma música e de um filme a um livro, tudo que é famoso e lucrativo se torna valioso economicamente graças à manipulação das Multidões. As pessoas não pedem para saber com o que o novo logotipo da Coca-Cola se parece, nem sobre a melodia de “Like a Virgin”. Educação, Mídia e Propaganda ensinam tudo isso da maneira mais dura; seja martelando nossos cérebros ou especulando sobre nossa sede, nossa fome, nossa necessidade de se comunicar e se divertir — e, mais que tudo, nossa solidão e desespero. Nesses dias de Internet, o que pode ser copiado também pode ser compartilhado. Quando se trata de conteúdo, nós podemos dar tudo a todos ao mesmo tempo.

Ao redor disso uma nova classe social está despertando. Não uma classe de trabalhadores, mas uma classe de Produtores. Produtores são piratas e hackers por padrão; eles reciclam as imagens, os sons e os conceitos do Mundo. Algumas partes eles inventam, mas a maior parte é emprestada dos outros.

Porque a informação ocupa uma parte física dos nossos corpos, porque ela está literalmente “instalada” no nosso cérebro e não pode ser apagada apenas pela vontade — as pessoas têm o direito de possuir o que é projetado sobre elas; Elas têm o direito de ser donas de si mesmas! Porque esse é um Mundo globalizado baseado em desigualdade e lucro, porque o conteúdo de uma música, de um filme ou de um livro são pontos de vantagem numa luta feroz pela sobrevivência — qualquer cidadão global tem o direito moral de se apropriar de uma cópia digital de uma música, de um filme ou de um livro. Porque software é uma linguagem internacional, os segredos do Mundo agora são escritos em Adobe e Microsoft: nós devemos tentar hackeá-los. Por fim, porque a pobreza é o campo de experimentação de toda medicina global — nenhuma patente deve ser aplicada.

Hoje, toda pessoa com um computador é um Produtor e um Pirata. Todos vivemos na Internet, esse é o nosso novo país, o único território que faz sentido defender e proteger. A terra da Internet é a informação. As pessoas devem ser capazes de usar essa terra livremente, enquanto as corporações devem pagar para usá-la — uma empresa definitivamente não é uma pessoa.

A Internet agora está produzindo “Internets”, situações que existem não apenas online mas também no mundo real, governadas pelo que está acontecendo online. Esse é o momento para fundarmos um Movimento Global da Pirataria. A liberdade de infringir o copyright, a liberdade de compartilhar informação e drogas: esses são os nossos novos “Commons”. Eles são Direitos Universais e, como tal, as Autoridades não vão permiti-los sem uma batalha. Mas essa será uma batalha diferente porque pela primeira vez as Multidões estão desrespeitando a Lei instintivamente e no Mundo inteiro.

Hoje, um exército de adolescentes está pirateando, os adultos estão pirateando e até mesmo os idosos, pessoas da Esquerda e da Direita, estão pirateando. Todos com um computador estão pirateando alguma coisa; como um romance da Deusa Atena, a Informação quer se libertar da cabeça da Tecnologia e isso ajudará na nossa empreitada.

Piratas da Internet, Uni-vos!

Milton Manetas, 2009

Livros

Metrópolis - Thea Von Harbou (1925). Até onde podemos chamar algo de bem escrito?

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Todos já ouvimos falar do filme de 1927 que revolucionou a arte do cinema. Da época do cinema mudo, um dos mais caros e virtuosos trabalhos de ficção científica; na época o mais longo já feito. Bravo! Bravo! Parabéns ao esplendor de Metrópolis! Venham todos, saúdem o filme do futuro e sua cidade opulenta!

O filme é um projeto conjunto do austríaco Fritz Lang e a alemã Thea von Harbou, casados. O filme é alemão. Fritz negava sua própria influência expressionista apesar de ter criado M — O Vampiro de Düsseldorf, marco expressionista, em 1931. Dois anos depois, uma carta chegava à residência Lang-von Harbou, enquanto produziam outro roteiro. A carta abala profundamente ambos, e Fritz vai passar uma temporada em Paris. No final de 1933, Hitler sobe ao poder na Alemanha. Fritz se divorcia e passa o resto da vida produzindo filmes em Hollywood. Alguns eram sobre a guerra.

Já Thea von Harbou leu a carta com entusiasmo. Um homem próximo do remetente, fã de cinema e especialmente fã do expressionismo alemão de Lang e von Harbou, assistiu o aclamado Metrópolis e se encantou; era um filme que ecoava muito do que pensava e se encaixava bem com o que pensava. O remetente e o correlato tinham um projeto muito importante e queriam Lang e von Harbou no time como pessoas que realmente entendiam a visão de humanidade que eles tinham! Foi na resposta a essa carta que Thea von Harbou firmou seu papel dentro do ministério da propaganda de Goebbels. Roteirizaria alguns filmes da indústria cinematográfica de Hitler. Tentou dirigir dois. Não gostou.

Metrópolis (1925) é o livro que eventualmente viraria o roteiro do filme. A história é simples — Metrópolis, uma cidade futurista e distópica, onde tudo é rodado por máquinas; ela é fisicamente dividida em dois espaços, a cidade alta e a cidade baixa. Na cidade alta, Joh Fredersen controla A Máquina, que roda a cidade, e, na cidade baixa, os trabalhadores vivem uma vida miserável.

Conhecemos Freder, filho de Joh, que questiona a existência d'A Máquina, e Maria, uma moça do submundo da cidade que começa a organizar os trabalhadores. Mas os trabalhadores, tadinhos, não tem nenhuma figura máscula, nenhum messias, nenhum übermensch, que os guie.

Em páginas muito bem imaginadas e liricamente ricas, Thea von Harbou constrói a realidade dessa cidade opulenta e grandiosa, uma conquista da humanidade, da qual a humanidade é sequestrada, e do menino, filho do dono da máquina, aristocrata, descer ao submundo e ouvir um discurso de Maria:

As Mãos vinham. As Mãos trabalhavam por salários. As Mãos não sabiam nem o que faziam. Nenhum construindo à Sul sabia daqueles escavando à Norte. O Cérebro que concebera a destruição da Torre de Babel era desconhecido àqueles que a construíram. Cérebro e Mãos eram afastados e estranhos. Cérebro e Mãos se tornaram estranhos. O prazer de um se tornou o fardo do outro. O hino de um, a maldição do outro.

[...]

Os homens não mais se entenderem, Cérebro e Mãos não mais se entenderem, foi o motivo da queda da Torre de Babel. [...] Cérebro e Mãos não mais se entendem e isso um dia destruirá a Nova Torre de Babel

Cérebro e Mãos precisam de um mediador. O Mediador entre Cérebro e Mãos deve ser o Coração.

Freder assiste de longe o discurso e fica tocado. Beija o chão e promete: serei eu; eu serei o Mediador. Perguntam a Maria quanto tempo demorará esse tal Mediador, ao que ela responde:

Tenham paciência, meus irmãos! O caminho do mediador é longo... muitos de vocês clamam: Lutem! Destruam! -- Não lutem, irmãos, pois isso os leva ao pecado. Acreditem em mim: Alguém virá que falará por vocês -- que será o mediador entre vocês, as Mãos, e o homem cujo Cérebro e Vontade está sobre vocês.

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Freder promete encontrar Maria.

Joh Fredersen, procurando por seu filho, também assiste ao discurso de Maria sobre a Torre de Babel -- assim como deve estar pulando aos seus olhos, o livro não ignora toda sua alegoria cristã. Do seu lado, ordena a criação de Futura, um autômato que será a voz d'A Máquina, à imagem e semelhança de Maria, para propagandear as mesmas coisas que Maria, mas com o viés de cima. É a imagem famosa de Metrópolis.

Freder por algum tempo se apaixona por Futura, mas eventualmente retoma seu trabalho como O Mediador, e numa descrição emocionante os últimos capítulos de Thea acompanham Maria guiando os trabalhadores até o desligamento d'A Máquina. A cidade para. Os parágrafos mudam.

Freder, o Mediador, aperta a mão de Joh, o Cérebro, e Maria, as Mãos. Seu pai e sua esposa. O livro acaba.

É um livro profundamente nazista. A ideia do übermensch está ali, escrachada, e o livro ainda não tem a decência de se pintar como algo além de um manifesto aristocrata, já que os trabalhadores mesmo não pensam, são uma massa. A aliança entre Cérebro e Mãos é a representação de toda a visão política do populismo fascista; a grandiosidade d'A Máquina é precisamente o nacional-socialismo. O livro é irremediavelmente nazista, e não tenta esconder isso. O ideal messiânico de homem - próximo do rebelde aristocrata de Nietzsche - e a forma de revolução que Thea retrata foram precisamente as coisas que atraíram Hitler a esse livro.

Não podemos cair na tautologia de imaginar que o livro não tem alma por ser nazista e é nazista por não ter alma, essa forma de antifascismo não cola mais. Metrópolis é um livro sem alma, mas porque em seu núcleo tem a valorização de uma versão de homem que não existe e uma sociedade inerentemente desigual, a ideia de que para que as Mãos, inertes, possam ser salvas, um Mediador tem que surgir, rebelde d'A Mente, capaz de pensamento, para guiá-las. Metrópolis não é um livro sem alma por ser nazista nem vice-versa, mas é um livro tanto sem alma quanto nazista pelos mesmos motivos.

Então de que adianta ter uma boa lírica? Thea von Harbou escreve tecnicamente bem, e muito bem, captura bem sentimentos, faz bons discursos, pinta bem uma cena, mas de que serve tudo isso se a humanidade não está ali?

Muito dos comentários em torno de Metrópolis é, precisamente, "nazista mas muito bem escrito", e aí que eu levanto a pergunta: tem como um livro nazista ser bem escrito? Até que ponto esse mea culpa da "qualidade objetiva" do livro faz sentido quando não apenas a autora é nazista como também o livro é uma imensa fantasia nazista?

No fundo, Metrópolis é um estudo de caso interessantíssimo, um livro que põe o leitor a pensar no que é considerado bom para ele. A tradição pós-moderna de crítica tende a separar a estética do conteúdo, e a estética literária de Metrópolis, sob essa análise, é ótima, mas até que ponto ela faz sentido? Até que ponto podemos chamar um livro nazista E desalmado de bem escrito? Até onde dizer que ele é bem escrito não é justamente ecoar os ideais estéticos que os nazistas eram obcecados? Críticos elogiam a representação de grandiosidade do livro, mas até onde considerá-la uma boa representação não é, em si, entender que a representação nazista de grandiosidade é boa? Quantos poréns têm de ser feitos pra achar as coisas que podem ser, isoladamente, chamadas de "boa escrita", e em que ponto começa-se a avaliar um livro que só existe num simulacro fora de si, tal qual Futura? Até que ponto se aplica a tal Morte Do Autor?

Até que ponto um livro nazista pode ser bem escrito?

A meu ver, nunca.