A Crítica da Crítica Arte pela Arte da Arte Crítica

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A arte é crítica. Crítica pois representa a crise do nosso tempo, crítica como a situação é crítica.

A arte é crítica. Crítica pois coloca o dedo ou não nas feridas do nosso tempo, crítica como o senso é crítico.

A crítica, gênero literário, é sobretudo uma obra de transformação. Observa a crítica arte e transforma ela não somente em algo que representa seu tempo, como também em algo que trabalha em seu tempo.

A crítica da crítica arte pela arte da arte crítica.

Perspectiva

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Algo importante de se pontuar, antes de qualquer crítica, é a perspectiva de onde parte o crítico. Assim como a tal "morte do autor" nada mais é que um mito conveniente, também o é a "morte do crítico". Quem diz que é um crítico sem ideologia está enganado ou enganando. Pois aqui apresento minha perspectiva como, antes de tudo, marxista-leninista, hegeliano, calcado na dialética do material, comunista. Queer, neurodivergente, árabe e pobre. Antissionista. Corinthiano.

Não apresento aqui tudo o que leio ou consumo, só as críticas, mas nas horas vagas aproveito boas fanfics de época.

A Crítica

Apesar de um gênero, existem diversas interpretações sobre o que é a crítica, qual é seu papel e como é feita.

Entendo a crítica da arte como a completude da própria arte, metade da relação dialética, seguindo muito da tradição imanente, revolucionária e impossível de Theodor Adorno e Walter Benjamin, do fervente humanismo de Edward Said e Alfredo Bosi, e da tradição crítica da branquitude e hombritude na crítica literária de Conceição Evaristo e Uruguay Cortazzo. Em particular, recomendo as críticas de Balzac por Adorno e Goethe por Benjamin — e o livro de Thijs Lijster sobre o trabalho crítico de ambos —; o artigo de Cortazzo sobre Branquitude e Critica da Arte; Imperialismo e Cultura, de Said; Céu, inferno, coletânea de Bosi; e o artigo de Nayara da Cruz comparativo entre as críticas a Machado de Assis e Conceição Evaristo.

Uma nota sobre a Pirataria

A pirataria individual não é nenhuma aventura revolucionária, não confere nenhuma quebra de sistema, a não ser àqueles que sonham molhado com ação direta. Acima da pirataria, se encontra a ética proletária, entre oprimidos do sistema. Piratear não é errado por ser pirataria — essa tautologia não nos leva a lugar algum — piratear não é metafisicamente nada, voltemos à materialidade.

Na materialidade, a pirataria não é uma coisa que acontece sem Estado -- é um entrave jurídico, criado pela Propriedade Intelectual, uma forma de Propriedade Privada, que imprime a uma ideia um dono. Isso não é dizer que a cópia e o plágio não são coisas; muito pelo contrário, são e seu efeito se credita na própria materialidade, mas não o são no âmbito do direito, e sim no âmbito da ética, que sobrepõe o conjunto do jurídico.

Nos regemos pela ética proletária, dialética e materialista. Então, cabe analisar como essas formas jurídicas de fato se suscitam dentro dessa ética. Dessa forma, conseguimos entender, por exemplo, como espalhar um pdf de um autor independente é antiético, mas o Sci-Hub é a empreitada mais importante da história da ciência. Cabe a nós observar quem são os piratas e quem são os produtores. Cabe a nós entender nossa solidariedade e nossa consciência de classe.

A arte não é produzida a um par de mãos. Até o capitalismo financeiro, ninguém nem sabia quem compunha as músicas que depois vieram a se chamar pop; até o capitalismo financeiro, ninguém tinha que pagar impostos a Shakespeare por produzir suas peças. O plágio existia antes disso e era condenado, com problemáticas. Mas a propriedade intelectual, a ideia de que um objeto artístico tem dono, essa é profundamente ocidental e profundamente financeira.

A produção que escapa desse centro já mostra a coletivização da arte — pense no pagode. Conhecemos os maiores nomes do pagode, mas quem me diz se X música clássica do pagode é do Revelação, do Exaltasamba ou do Soweto? Qualquer um pode fazer — e mudar! — Sonho Meu, mas nunca esqueceremos o nome de Dona Ivone Lara. Isso não é um apelo para ignorarmos nossos ancestrais criadores, e sim para que deixemos de conferir a eles uma propriedade que é de todos.

A propriedade intelectual, então, serve para manter o interesse dos ricos enquanto se veste de uma boa empreitada para todos os artistas. Na prática, na materialidade, vemos a torto e a direito grandes empresas roubando o trabalho de pequenos artistas, pois essas estão acima do direito e da ética -- visto a própria nova empreitada dos "revolucionários" da tecnologia, a IA gerativa, um simulacro da experiência humana que não é nem inteligente nem artificial -- enquanto as mesmas empresas impedem a produção artística transformadora dos produtores que ousarem se assemelhar aos seus produtos -- um dos projetos mais revolucionários do funk da atualidade, Sexta dos Crias, não está disponível no Spotify pela mesma lei de copyright que deveria protegê-lo, por usar samples.

A verdade é que a pirataria é, sobretudo, um entrave jurídico; a propriedade intelectual é, sobretudo, uma negação da coletividade da cultura humana. Nos guiemos pela ética em comunidade, e disso tiraremos as respostas materiais para o que é verdadeiramente antiético. Além do antiético, pirateemos.

Em luz da pirataria mas pelas mesmas razões jurídicas, não irei disponibilizar o material criticado aqui na wiki, mas quem quiser ele disponível, me procure.

Manifesto Pirata

Notícias de um jornal no futuro: “Um homem foi parado ontem na fronteira da Itália com a França, seu computador foi analisado e material pirata foi encontrado, a maioria softwares da Adobe e músicas dos Beatles. O homem foi preso em flagrante”

De um poema a uma droga, de um software a uma música e de um filme a um livro, tudo que é famoso e lucrativo se torna valioso economicamente graças à manipulação das Multidões. As pessoas não pedem para saber com o que o novo logotipo da Coca-Cola se parece, nem sobre a melodia de “Like a Virgin”. Educação, Mídia e Propaganda ensinam tudo isso da maneira mais dura; seja martelando nossos cérebros ou especulando sobre nossa sede, nossa fome, nossa necessidade de se comunicar e se divertir — e, mais que tudo, nossa solidão e desespero. Nesses dias de Internet, o que pode ser copiado também pode ser compartilhado. Quando se trata de conteúdo, nós podemos dar tudo a todos ao mesmo tempo.

Ao redor disso uma nova classe social está despertando. Não uma classe de trabalhadores, mas uma classe de Produtores. Produtores são piratas e hackers por padrão; eles reciclam as imagens, os sons e os conceitos do Mundo. Algumas partes eles inventam, mas a maior parte é emprestada dos outros.

Porque a informação ocupa uma parte física dos nossos corpos, porque ela está literalmente “instalada” no nosso cérebro e não pode ser apagada apenas pela vontade — as pessoas têm o direito de possuir o que é projetado sobre elas; Elas têm o direito de ser donas de si mesmas! Porque esse é um Mundo globalizado baseado em desigualdade e lucro, porque o conteúdo de uma música, de um filme ou de um livro são pontos de vantagem numa luta feroz pela sobrevivência — qualquer cidadão global tem o direito moral de se apropriar de uma cópia digital de uma música, de um filme ou de um livro. Porque software é uma linguagem internacional, os segredos do Mundo agora são escritos em Adobe e Microsoft: nós devemos tentar hackeá-los. Por fim, porque a pobreza é o campo de experimentação de toda medicina global — nenhuma patente deve ser aplicada.

Hoje, toda pessoa com um computador é um Produtor e um Pirata. Todos vivemos na Internet, esse é o nosso novo país, o único território que faz sentido defender e proteger. A terra da Internet é a informação. As pessoas devem ser capazes de usar essa terra livremente, enquanto as corporações devem pagar para usá-la — uma empresa definitivamente não é uma pessoa.

A Internet agora está produzindo “Internets”, situações que existem não apenas online mas também no mundo real, governadas pelo que está acontecendo online. Esse é o momento para fundarmos um Movimento Global da Pirataria. A liberdade de infringir o copyright, a liberdade de compartilhar informação e drogas: esses são os nossos novos “Commons”. Eles são Direitos Universais e, como tal, as Autoridades não vão permiti-los sem uma batalha. Mas essa será uma batalha diferente porque pela primeira vez as Multidões estão desrespeitando a Lei instintivamente e no Mundo inteiro.

Hoje, um exército de adolescentes está pirateando, os adultos estão pirateando e até mesmo os idosos, pessoas da Esquerda e da Direita, estão pirateando. Todos com um computador estão pirateando alguma coisa; como um romance da Deusa Atena, a Informação quer se libertar da cabeça da Tecnologia e isso ajudará na nossa empreitada.

Piratas da Internet, Uni-vos!

Milton Manetas, 2009

Literatura

Metrópolis - Thea Von Harbou (1925). Até onde podemos chamar algo de bem escrito?

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Todos já ouvimos falar do filme de 1927 que revolucionou a arte do cinema. Da época do cinema mudo, um dos mais caros e virtuosos trabalhos de ficção científica; na época o mais longo já feito. Bravo! Bravo! Parabéns ao esplendor de Metrópolis! Venham todos, saúdem o filme do futuro e sua cidade opulenta!

O filme é um projeto conjunto do austríaco Fritz Lang e da alemã Thea von Harbou, casados. O filme é alemão. Fritz negava sua própria influência expressionista apesar de ter criado M — O Vampiro de Düsseldorf, marco expressionista, em 1931. Dois anos depois, uma carta chegava à residência Lang-von Harbou, enquanto produziam outro roteiro. A carta abala profundamente ambos, e Fritz vai passar uma temporada em Paris. No final de 1933, Hitler sobe ao poder na Alemanha. Fritz se divorcia e passa o resto da vida produzindo filmes em Hollywood. Alguns eram sobre a guerra.

Já Thea von Harbou leu a carta com entusiasmo. Um homem próximo do remetente, fã de cinema e especialmente fã do expressionismo alemão de Lang e von Harbou, assistiu o aclamado Metrópolis e se encantou; era um filme que ecoava muito do que pensava e se encaixava bem com o que pensava. O remetente e o correlato tinham um projeto muito importante e queriam Lang e von Harbou no time como pessoas que realmente entendiam a visão de humanidade que eles tinham! Foi na resposta a essa carta que Thea von Harbou firmou seu papel dentro do ministério da propaganda de Goebbels. Roteirizaria alguns filmes da indústria cinematográfica de Hitler. Tentou dirigir dois. Não gostou.

Metrópolis (1925) é o livro que eventualmente viraria o roteiro do filme. A história é simples — Metrópolis, uma cidade futurista e distópica, onde tudo é rodado por máquinas; ela é fisicamente dividida em dois espaços, a cidade alta e a cidade baixa. Na cidade alta, Joh Fredersen controla A Máquina, que roda a cidade, e, na cidade baixa, os trabalhadores vivem uma vida miserável.

Conhecemos Freder, filho de Joh, que questiona a existência d'A Máquina, e Maria, uma moça do submundo da cidade que começa a organizar os trabalhadores. Mas os trabalhadores, tadinhos, não tem nenhuma figura máscula, nenhum messias, nenhum übermensch, que os guie.

Em páginas muito bem imaginadas e liricamente ricas, Thea von Harbou constrói a realidade dessa cidade opulenta e grandiosa, uma conquista da humanidade, da qual a humanidade é sequestrada, e do menino, filho do dono da máquina, aristocrata, descer ao submundo e ouvir um discurso de Maria:

As Mãos vinham. As Mãos trabalhavam por salários. As Mãos não sabiam nem o que faziam. Nenhum construindo à Sul sabia daqueles escavando à Norte. O Cérebro que concebera a destruição da Torre de Babel era desconhecido àqueles que a construíram. Cérebro e Mãos eram afastados e estranhos. Cérebro e Mãos se tornaram estranhos. O prazer de um se tornou o fardo do outro. O hino de um, a maldição do outro.

[...]

Os homens não mais se entenderem, Cérebro e Mãos não mais se entenderem, foi o motivo da queda da Torre de Babel. [...] Cérebro e Mãos não mais se entendem e isso um dia destruirá a Nova Torre de Babel

Cérebro e Mãos precisam de um mediador. O Mediador entre Cérebro e Mãos deve ser o Coração.

Freder assiste de longe o discurso e fica tocado. Beija o chão e promete: serei eu; eu serei o Mediador. Perguntam a Maria quanto tempo demorará esse tal Mediador, ao que ela responde:

Tenham paciência, meus irmãos! O caminho do mediador é longo... muitos de vocês clamam: Lutem! Destruam! — Não lutem, irmãos, pois isso os leva ao pecado. Acreditem em mim: Alguém virá que falará por vocês — que será o mediador entre vocês, as Mãos, e o homem cujo Cérebro e Vontade está sobre vocês.

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Freder promete encontrar Maria.

Joh Fredersen, procurando por seu filho, também assiste ao discurso de Maria sobre a Torre de Babel — assim como deve estar pulando aos seus olhos, o livro não ignora toda sua alegoria cristã. Do seu lado, ordena a criação de Futura, um autômato que será a voz d'A Máquina, à imagem e semelhança de Maria, para propagandear as mesmas coisas que Maria, mas com o viés de cima. É a imagem famosa de Metrópolis.

Freder por algum tempo se apaixona por Futura, mas eventualmente retoma seu trabalho como O Mediador, e numa descrição emocionante os últimos capítulos de Thea acompanham Maria guiando os trabalhadores até o desligamento d'A Máquina. A cidade para. Os parágrafos mudam.

Freder, o Mediador, aperta a mão de Joh, o Cérebro, e Maria, as Mãos. Seu pai e sua esposa. O livro acaba.

É um livro profundamente nazista. A ideia do übermensch está ali, escrachada, e o livro ainda não tem a decência de se pintar como algo além de um manifesto aristocrata, já que os trabalhadores mesmo não pensam, são uma massa. A aliança entre Cérebro e Mãos é a representação de toda a visão política do populismo fascista; a grandiosidade d'A Máquina é precisamente o nacional-socialismo. O livro é irremediavelmente nazista, e não tenta esconder isso. O ideal messiânico de homem — próximo do rebelde aristocrata de Nietzsche — e a forma de revolução que Thea retrata foram precisamente as coisas que atraíram Hitler a esse livro.

Não podemos cair na tautologia de imaginar que o livro não tem alma por ser nazista e é nazista por não ter alma, essa forma de antifascismo não cola mais. Metrópolis é um livro sem alma, mas porque em seu núcleo tem a valorização de uma versão de homem que não existe e uma sociedade inerentemente desigual, a ideia de que para que as Mãos, inertes, possam ser salvas, um Mediador tem que surgir, rebelde d'A Mente, capaz de pensamento, para guiá-las. Metrópolis não é um livro sem alma por ser nazista nem vice-versa, mas é um livro tanto sem alma quanto nazista pelos mesmos motivos.

Então de que adianta ter uma boa lírica? Thea von Harbou escreve tecnicamente bem, e muito bem, captura bem sentimentos, faz bons discursos, pinta bem uma cena, mas de que serve tudo isso se a humanidade não está ali?

Muito dos comentários em torno de Metrópolis é, precisamente, "nazista mas muito bem escrito", e aí que eu levanto a pergunta: tem como um livro nazista ser bem escrito? Até que ponto esse mea culpa da "qualidade objetiva" do livro faz sentido quando não apenas a autora é nazista como também o livro é uma imensa fantasia nazista?

No fundo, Metrópolis é um estudo de caso interessantíssimo, um livro que põe o leitor a pensar no que é considerado bom para ele. A tradição pós-moderna de crítica tende a separar a estética do conteúdo, e a estética literária de Metrópolis, sob essa análise, é ótima, mas até que ponto ela faz sentido? Até que ponto podemos chamar um livro nazista E desalmado de bem escrito? Até onde dizer que ele é bem escrito não é justamente ecoar os ideais estéticos que os nazistas eram obcecados? Críticos elogiam a representação de grandiosidade do livro, mas até onde considerá-la uma boa representação não é, em si, entender que a representação nazista de grandiosidade é boa? Quantos poréns têm de ser feitos pra achar as coisas que podem ser, isoladamente, chamadas de "boa escrita", e em que ponto começa-se a avaliar um livro que só existe num simulacro fora de si, tal qual Futura? Até que ponto se aplica a tal Morte Do Autor?

Até que ponto um livro nazista pode ser bem escrito?

A meu ver, nunca.

Tangente Vers L'est (Tangente Ao Leste) - Maylis de Kerangal (2012). O tempo e a língua.

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"Traduttore, traditore", diz o surrado ditado italiano, "tradutor, traidor". É uma frase ingrata, mutilada pelos deuses do tempo e constantemente questionada; afinal, o tradutor está sobretudo do lado do leitor, mas o dito incita pensamentos interessantes: toda tradução é uma traição, se formos de língua A a língua B, deixamos alguma coisa de A e colocamos alguma coisa de B – essa é a traição. Mas o conteúdo não é perdido, entrelinhas têm poder.

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Tangente Vers L'est é uma novela da francesa Maylis de Kerangal, escrita em francês. Foi traduzida para o inglês 10 anos depois de publicada, com o título Eastbound, que pode ser abertamente traduzido somente para "Vers L'est", mas o "tangente" no título original passa um significado – a fuga da normalidade, o quase; enquanto a escolha de "bound" para o título em inglês também passa um significado – a ida determinada, o inevitável. Perde-se em A, ganha-se em B, mas lendo o texto tanto a perda quanto o ganho ainda guardam seu poder. Traduttore, traditore; traduzione, tradimento.

Acompanhamos dois personagens, Hélène e Alyosha, que pegaram o primeiro trem da linha transsiberiana que conseguiram logo depois de fugirem. Ambos profundamente diferentes. Ambos fugitivos com apenas uma coisa em mente – chegar em Vladivostok.

Alyosha, russo, desertou do exército. Não quer muito da vida. Só fala russo.

Hélène, francesa, foge do marido. Foi morar na Sibéria por ele. A fuga não tem a ver com Anton, apesar de fugir na calada da noite. É que o amor não é mais suficiente, ela não aguenta mais ser uma estranha numa terra estranha, que só fala francês e não se encaixa.

Os olhos negros de Anton a prendiam. Então, como foi o dia? Hélène contava dos russos incríveis, das colinas verdejantes no entorno da vila, belas apesar de frias, e do Yenisey que, sim, era o rio mais majestoso de toda a Rússia. Ele escutava, tenso, atento, conhecia cada sobe e desce da turbulência que a agitava, a efervescência tão forte, tão excepcional, quanto aquela que rasgava a atmosfera a umas centenas de metros, escutava-na com tanta atenção que acabou escutando tudo que não contou, o quão difícil era para ela viver ali, deslocada, longe do seu clima, da sua língua, cega e surda, diria de novo e de novo, sorrindo, e sozinha (glifo próprio)

E é assim que Maylis de Kerangal nos mostra o passado de Hélène, num tempo sem localização temporal, memórias idílicas, tingidas em filtro sépia e gravadas em filme queimado. Hélène vive o tempo fora do tempo, o tempo dos que tem tempo a gastar. Ao fim da viagem, Hélène não sabe dizer se se passaram duas semanas ou dois dias. Hélène vive o tempo da primeira classe, onde se localiza sua cabine. Não é ingenuidade – pelo contrário, Hélène sabe bem o que faz – e sim a profunda oportunidade de navegar através de sonhos. Mas toda essa arcádia é subitamente cortada com faca cega toda vez que voltamos à ligeirez e desespero do desertor Alyosha no espaço-tempo bem real do trem que corre mais devagar do que devia, como todo trem russo, a 60km/h.

O livro encara o tão comum clichê do encontro de dois mundos – o jovem da terceira classe encontra a moça da primeira que o esconde em seus aposentos e uma bela história de amor se desenrola, como Jack e Rose – e desvia pela tangente. O primeiro encontro de Hélène e Alyosha não é nada menos que conturbado, com ela rapidamente tendo que esconder o garoto que não conhece dos soldados que estão fazendo a vistoria nos vagões em busca dele. Alyosha se põe vulnerável, e não consegue nem comunicar a Hélène nada, ela tem que descobrir pelo olhar de desespero o que está acontecendo, e talvez perturbar a própria fuga a Vladivostok. Hélène decide protegê-lo.

Ele não é nenhum pedinte, nenhuma vítima, ele é como ela, um fugitivo, só isso.

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Quem são esses completos estranhos um para o outro? Eles tentam conversar, mas não conseguem. Na cabine de Hélène, depois das línguas que falam não lhes fazerem justiça, encaram a janela. Como farão outras vezes ao longo do livro, observam uma natureza linda, implacável, irretocável. Enquanto o tempo de Hélène é etéreo e o de Alyosha é rápido, o da natureza é infinito. De Kerangal gasta todas as palavras necessárias para fazer jus ao espaço que pode ser apreciado e sentido.

[...] a aurora subindo atrás da floresta em todo seu ângulo, levantando cada tronco para a vertical, a azulada vegetação rasteira perfurada por raios carregados de uma luz carnal, a taiga tal qual um tecido magnético, modulado ao infinito pela nova grossura do ar [...]

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Hélène e Alyosha se entendem apenas na linguagem da fuga e da natureza. Não se tornam especialmente próximos, mas passam a entender um ao outro e admirar um ao outro. Em algum desentendido, Alyosha se instaura de vez no quarto de Hélène. Aos poucos, com poucas conversas e muitas amostras, se entendem mais ou menos, mas Hélène tem o medo natural de um homem estranho em seus aposentos, enquanto Alyosha tem o medo de ser reportado.

Ela está me ajudando, mas ela não confia em mim.

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Enquanto isso, observam o lago Baikal da janela.

A coisa aperta em uma das últimas paradas antes de Vladivostok. Alyosha dorme nos aposentos de Hélène e o exército vai procurá-lo novamente. Alyosha ameaça Hélène com palavras, palavras que ela não entende mas parece uma ameaça. Hélène esconde o desertor na cama, mas sua camisa, que ele tirara para dormir, fica com ela. Hélène abre as portas e duas figuras se apresentam, perguntam algumas coisas, olham de longe os aposentos. Perguntam da camisa. É essa, essa é a hora que Hélène pode entregar Alyosha para evitar problemas para si, o mesmo Alyosha que a tinha ameaçado há não muito tempo. Ela diz que a camisa é do marido. Não perguntam mais nada. Hélène respira aliviada.

Alyosha volta para o seu aposento original da terceira classe com a mesma estranheza que chegou nos aposentos de Hélène – está chegando a última parada. Se ajeitam, saem. Encaram, por uma última vez, a grandeza da natureza, antes de sair do trem. Se veem de longe, e esse é o último momento que vão se ver. Partem em suas próprias jornadas.

A tradução de Tangente Vers L'est deixa algo a se pensar então: a personagem principal fala a língua da escritora. O leitor francês que acompanha a parisiense em seus desencontros com a língua russa se coloca em seu lugar e toma essa parte da história como o desentendimento com uma pessoa. Alyosha é o estranho. Na verdade, a ideia de Hélène como uma pessoa numa terra estranha permanece ao longo do livro. Maylis de Kerangal escreve para uma audiência francófona que não vai entender a língua de Hélène como estranha. O estranhamento de Hélène, em francês, é o estranhamento do leitor.

Mas a sina do tradutor surge em colocar esse livro numa terceira língua. Subitamente, tanto Hélène quanto Alyosha são estranhos entre si e para o leitor, e a língua de ambos é indecifrável. Um tradutor pode, claro, traduzir todo o francês de Hélène – colocar o leitor na mesma posição de um leitor francófono, apesar das diferenças culturais. Um tradutor também pode não fazer isso – apresentar o francês de Hélène e o russo de Alyosha em seu estranhamento – e colocar uma terceira língua conflitante, um terceiro na história, envolver o leitor na confusão linguística que os personagens passam e, com isso, a relação Hélène-Alyosha-natureza do tempo se metamorfoseia na relação Hélène-Alyosha-leitor. O leitor assume o papel da natureza ao mesmo tempo que a aprecia.

A forma que se escolhe traduzir Tangente Vers L'est define a relação do leitor com a história. Numa possibilidade, ele é Hélène; noutra, é a natureza. Mas não se pode ter os dois ao mesmo tempo. Toda tradução é um ato de traição. Traduzione, tradimento.

A Vida e as Mortes de Severino Olho-de-Dendê - Ian Fraser (2022). Os rumos do fantástico decolonial.

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A ficção no ocidente é famosa por apresentar temas e capítulos com epígrafes. Pequenas frases ou citações, geralmente atribuídas a outro autor, que apresentam ao leitor a história, mas não em um sentido narrativo. O leitor ocidental, então, abre um livro e vê isso:

Introdução é barril,
e não pode ser banal.
Começar no início
não é lá original
Prosador que é sagaz
começa já no final.
E o que é início?
Mais um ponto a esmo.
E por onde começar,
se ontem é um sesmo?
Antes do antes, antes.
Só cavar, não é mesmo?
Os "porquês" e os "comos"
mostramos no processo.
Deixar o leitor sem chão,
a chave pro sucesso.
Pode confiar em mim.
Eu garanto. Professo.
[...]

No lugar de uma epígrafe, Ian Fraser coloca um cordel. O cordel é um gênero sertanejo - e portanto negro e indígena -, que se caracteriza como algo quase teatral e que se lê como um bom forró. Narrativamente, o cordel sabe que é um narrado e sabe que está sendo lido. O que se coloca em jogo, então, é que apesar de o que está por vir ter a forma de um romance, é algo com a estrutura de um cordel. Nisso, Ian localiza o leitor também no sertão. O título do livro, fazendo referência tanto a Morte e Vida Severina, do pernambucano João Cabral de Melo Neto, e a A Morte e a Morte de Quincas Berro-d'Água, do baiano Jorge Amado, apenas reforça que estamos prestes a ler um livro que se calca justamente nas tradições nordestinas de contação de histórias. Estereotipicamente, o que se espera é um cenário como o sertão de Vidas Secas, do alagoano Graciliano Ramos, desolado e antigo, mas Ian Fraser segue com o cordel:

Nesta vidinha nossa, muita coisa mudou.
Tecnologia nova, a galáxia conquistou.
Fruto da mudança, veja, o óleo de dendê.
Com seu uso, grandes distâncias podemos vencer.
Novos planetas e espécies, nós conhecemos.
Hoje, entre estrelas e cometas, vivemos.
[...]

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A cena que Ian passa a pintar daqui em diante é riquíssima. Carros voadores movidos a dendê. Cangaceiros espaciais. Capivaras atiradoras. Aliens com roupa feita de fitinhas de Senhor do Bonfim. O carnaval é verdadeiramente a maior festa da galáxia. Em planetas longes daqui, também se cultua Iemanjá, se come moqueca e se toma cachaça. O ponto de encontro intergaláctico é Salvador. O universo é nordestino. O livro é, sobretudo, uma imensa celebração de uma cultura pouquíssimo representada nesse tipo de história.

Ian Fraser é um autor de um movimento recente na literatura brasileira conhecido como Sertãopunk. É um movimento que surge como uma reação a uma forma pitoresca de retratar o Nordeste até então comum do cenário de ficção especulativa brasileiro. O sertãopunk, em si, faz parte de um movimento mais amplo conhecido como afrofuturismo. Entende-se que representar uma África e uma diáspora do passado, naturalista, tradicionalista, pitoresca, é uma limitação muito grande da capacidade de expressão desses povos. O afrofuturismo é profundamente importante, mas como argumentado por Marlon James, autor jamaicano de Leopardo Negro, Lobo Vermelho, muitas vezes o apego afrofuturista acaba sendo apenas estético, e a forma narrativa se perde na ocidentalidade do romance e da fantasia/ficção científica.

Uma ideia perigosa na literatura é a imobilidade de alguns conceitos. Parece que as palavras "fantasia", "romance", "ficção" e amigas são pétreas, existentes no mundo todo e desde o início dos tempos. Se fala d'As 1001 Noites como se fosse o mesmo romance que Dom Quixote, e desse como se fosse o mesmo que Iracema, que é o mesmo que Torto Arado. Do mesmo jeito, coloca-se Frankenstein como a mesma ficção científica que 20 Mil Léguas Submarinas, Fahrenheit 451 e Perdido em Marte. Algumas listas têm a decência de não colocar a Odisseia como ficção per se, mas chamam a jornada de Ulisses de "jornada do herói". Todas essas comparações deixam escapar um simplismo tacanho: de considerar gêneros como categorias imateriais, existentes além do tempo e espaço. A realidade é muito mais material que isso. O romance surgiu com Cervantes, e depois foi fixado por Flaubert, Goethe e Dostoevsky. A fantasia surgiu com George MacDonald e foi fixada por J. R. R. Tolkien. A ficção, então, como entendemos hoje, surgiu com os Cantos da Cantuária. É absurdo encaixar retroativamente qualquer outra coisa nessas caixinhas, não são conceitos flutuantes. E dessa forma conseguimos entender o problema com esses conceitos: perceba como foram coisas formadas todas na Europa. A tradição literária que temos como universalmente válida na verdade só passa a ser válida no fim da idade média da metade esquerda do menor continente do mundo. Os moldes fora do Ocidente nunca foram esses moldes petrificados, e sim foram forçosamente impostos como tal, afogando as formas nativas de expressão literária.

Para fazer uma ficção especulativa verdadeiramente decolonial, e passar só das aparências, cabe ao autor, então, buscar inspirações na forma de fazer ficção, nos gêneros nativos, além do romance. Resgatar não só as características de casa mas no seu próprio jeito de contar história. Ian afirma isso no fim desse primeiro cordel:

E é na vastidão da galáxia,
na imensidão do impossível,
que começamos na Terra.
Ó só se isso não é risível.
Seria, não fosse o nosso destino,
fim que parece irreversível.
É lá que achamos Severino,
apelidado Olho de Dendê.
Com um tiro no meio do peito,
ele faz de tudo pra não morrer.
Mas, leitor, não se aperreie, não.
Esse não é o final, pode crer.

Apesar da morte nem sempre ser um ponto final na tradição europeia, muitas vezes é uma tragédia sem volta. Já no cordel brasileiro, a situação é diferente - é tradicional que personagens morram e voltem, que voltem como fantasmas, ou que mesmo não voltem mas continuemos seguindo-os no pós-vida. O cordelista José Pacheco, em seus dois cordéis mais famosos, conta a história de Lampião morrendo, indo ao inferno em A chegada de Lampião no inferno, sendo recusado lá e depois indo ao paraíso em O grande debate que Lampião teve com São Pedro, onde também foi recusado, e disso forçado a rodar a Terra. A vida e as mortes de Severino Olho-de-Dendê é um cordel em prosa.

Depois desse belo cordel, a narrativa começa, e nela não irei me delongar. Com uma imaginação inigualável e uma leveza indescritível, Ian Fraser cria uma ópera espacial primorosa, uma das melhores que o gênero tem a oferecer, sem nunca perder a exaltação da cultura nordestina.

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A ficção especulativa é também um fruto do nosso tempo e uma arma tão valorosa para nossas verdades quanto a dita "ficção literária". Se a inventividade da forma e a recuperação de formas textuais na ficção literária tem um maior avanço, é por causa da crise estética na ficção especulativa. Nada melhor representa isso que os gêneros punk. Enquanto William Gibson fundou o movimento cyberpunk em cima de uma crítica da sociedade, isso já tinha se perdido em partes na criação do steampunk, que já apreciava mais a estética que as profundidades. Outros subgêneros, emersos do steampunk, como o dieselpunk, o atompunk, ficaram somente na estética. Uma tentativa de recuperação da crítica apareceu no solarpunk, mas caiu rápido numa imaginação pequeno-burguesa.

Movimentos como o sertãopunk, aqui no Brasil, e o silkpunk, na China, trazem a estética para os países colonizados, exaltando a cultura interna, mas podem cair nas armadilhas do romance. Agora, quando feitos com noção da própria história, resgatando não apenas imagens mas formas inteiras, esses gêneros são imparáveis. A Dinastia Dente-de-Leão, de Ken Liu, é uma quadrilogia épica que faz um resgate muito bonito do silkpunk num texto que, apesar de em prosa, remete aos clássicos Wuxia da era Ming como A Jornada do Dragão.

Em A vida e as mortes de Severino Olho-de-Dendê, Ian Fraser faz o mesmo. Mostra o que de fato é uma exaltação decolonial; o que de fato é o resgate de tradições literárias; e o que de fato é imaginar o fantástico através dos olhos do colonizado. Nessa toada, talvez dê até tempo de fazer uma piada com Star Wars.

Música

JOVEM OG - Febem (2021). O real no sonho e o fim da moralidade.

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"Quem não pode errar sou eu", coloca Febem no título e refrão de uma das músicas de RUNNING (2019); em R.U.A, Febem posiciona "preço é diferente de valor, pega a visão / ai de mim se eu não mantiver dois pé no chão"; em BOLT, que "tempo é dindin que não para de correr / pra sobreviver, tem que ser"; e ESSE É MEU ESTILO abre com Febem se apresentando como "louco consciente". RUNNING é um álbum que leva esse nome por representar a "corrida", o corre, e mais do que versos bonitos, esses são versos que representam em RUNNING um tema que funciona como mantra para o Corredor, o da conduta. Ao longo do álbum, em todas as músicas, Febem apresenta uma visão da conduta de comportamento que o Corredor segue - mais do que uma descrição do corre, RUNNING é quase um guia para ele. Em algum sentido, Febem apresenta a realidade através da própria realidade; a realidade como deve ser. Dois anos depois, Febem lança outro álbum. Dessa vez, a realidade é apresentada através do sonho; a realidade como ela é.

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Em JOVEM OG, acompanharemos a história do próprio Jovem OG, acompanhando as facetas de sua vida através de um cenário quase idílico. Tão idílico que a primeira música, JOVEM, se passa em um sonho.

Será que é sonho? Será que é dejavú?
Foda-se, vou aproveitar, céu nunca teve tão azul.
Imagina, poder pra resolver todo problema,
Virar o jogo, dar o troco, mudar de foco a cena.

Mais uma vez, Febem e o produtor CESRV selam uma parceria inigualável no rap nacional. Em JOVEM, CESRV constrói um ambiente sônico com batidas carregadas de delay e reverb e coloca a voz de Febem quase abafada pela instrumentação, monotônica. A intenção é clara - colocar Febem como o narrador do sonho que o Jovem OG está tendo. O sonho, então, se constrói através do eu lírico imaginando uma comunidade sem opressão, mas não utopicamente, e sim dignamente. Diferentemente de RUNNING, aqui Febem apresenta a realidade como ela é, sem imprimir um juízo de valor ao sonho do Jovem OG.

Só um animal como ele [o porco] confunde a bíblia com uma arma,
Dizendo que serve a lei, mas hoje vai provar do karma,
Que agora é nossa vez de ser feliz, de dar risada,
Paz na quebrada acaba de ser decretada.
E mesmo que eu ainda ande pelo vale da sombra,
Volta de ré, filha da puta, cancelei sua ronda.

E para firmar ainda mais que JOVEM é um sonho, ao final da música toca o despertador. Nosso personagem principal acorda com uma ligação em MÉXICO, situando nosso personagem na realidade, mas mesmo aqui o tema principal continua sendo o sonho. Além disso, em não se colocar como um rapper, Febem firma que ele e o Jovem OG são pessoas diferentes, apesar de Febem ser o narrador da história.

Sonhando em viver a vida como um rapper vive,
O céu é o limite, Notorious Big.
[...]
Sem novidade, é igual viver de música,
Na fé que um dia canta poesia acústica.

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Com um flow impecável sustentado pelo estilo de CESRV, Febem continua não questionando a moralidade dos sonhos - papo de lucro, guerra só com o estado. Acontece que, a partir de agora, os sonhos são a própria realidade, como conexões num quadro de investigação. Ou seja, através do sonho, Febem chega na realidade como ela é, e desafia o ouvinte em se deve ou não ser o juiz dos sonhos do Jovem OG.

Dez pras dez, dez peças dá dez mil
Ou dez anos de cadeia aqui no Brasil.
Se pá que era melhor ter feito um clipe de fuzil,
Pra estourar no Youtube com dez milhão de view.
Nada contra, progresso pra quem trampa,
Mais uma arma no clipe é menos um menor na boca.

Mas mesmo a realidade como ela é ainda é ideológica, e a música termina mostrando a repressão policial do Estado nas periferias, mas isso é feito novamente sem juízo moral, através de uma reportagem. Cabe ao ouvinte ficar indignado com isso enquanto o álbum faz uma transição para VAI PENSANDO, que, através de uma produção densa e claustrofóbica de CESRV, vai retratar exatamente o que move o Jovem OG.

Primeira vez que vi um quadro foi de luz quando cortaram lá em casa, eu tinha a idade da minha filha,
que desenhou um sol sorrindo na parede do meu quarto pra eu nunca mais esquecer porque ele brilha.
Não sei se sei até agora qual o sentido da arte mesmo ouvindo alguém me chamando de artista,
Tendo que explicar o significado das minhas tatuagem em abordagem de rotina da polícia.

Em VAI PENSANDO, aparece pela primeira vez o que pode ser pensado como um questionamento da conduta, mas não da conduta do Jovem OG, e sim de quem está no topo, um desdém com os perpetradores dos sistemas de opressão. Mas em um álbum como esse, onde nenhuma conduta é questionada, se levanta o desafio de porque isso seria diferente dessa vez. A verdade é que, por Febem, nenhuma conduta é questionada, mas novamente se apresenta o mundo como ele é, cínico. O questionamento então se volta ao ouvinte: porque você acredita que essa é uma questão de conduta?

Paguei umas conta atrasada enquanto alguém paga de marca por não aceitar que uma marca me paga.
Pouco pra entender, que é o quê? Onde cê tava?
Quando chegava lá em casa só roupa velha zuada?
Agora é mérito no lucro até dar concorrência, e bem ou mal,
Nunca vou deixar de ser sua influência.

Com isso, chegamos na menor música do álbum, que não por acaso se chama SEM TEMPO. Aqui, Febem e CESRV se juntam à voz aveludada de Jean Tassy para refletir sobre a própria natureza da moralidade. Mais uma vez em um ambiente sônico idílico, se questiona quem mesmo pode ser juiz, e a conclusão a que se chega é que o julgamento só cabe a quem tem tempo para fazê-lo.

Sem tempo pro que vão falar, se acaso eu tropeçar, ninguém vai me segurar.
Sem margem pra errar, espero nunca precisar, 190 nem pensar.
Pouco pra entender. Se é pouco pra você que tá torcendo para a nossa queda,
Meu pêsame, foda-se, nem a ver, que ao contrário de você,
Não tempo tempo pra perder.

Disso, chegamos na metade da história do Jovem OG, e no ápice da afronta à ideia de moralidade. Tendo visto a realidade cruel e sonhadora do Jovem OG e o que lhe motiva, e tendo ele se declarado desinteressado na moralidade, com uma narrativa de peito aberto, CRIME apresenta ao ouvinte a realidade como ela é e o questiona diretamente sobre a moralidade de julgá-la.

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Ela diz que adora levar tapa, ela tem descendência da Europa.
Pra eu não me sentir mal, pensei em reparação histórica.
Mas vão dizer que essa rima foi um tanto desnecessária,
Enquanto playboy já rimou que transou a filha da empregada.
Passou batido, né, filha da puta? Vida que segue.
Errado é o Febem quando foi comprar um Big Mac.

Isso tudo é feito através de uma produção esplêndida de CESRV. Aqui, dois dos três idealizadores do BRIME! mostram a que vieram com um grime pesado. Como é tradicional do grime, essa narrativa suja vem acompanhada de um beat sujo e automotivo. Interpoladas com um escapamento de moto, as frases crime parecem um veículo dando partida, referenciando o idílico de SEM TEMPO em imprimir ao som uma velocidade e deixando fuligem para trás. Aqui, mostra-se a realidade como ela é e de uma vez por todas se apresenta ao ouvinte o desafio da moralidade, como um teste final.

Crime, crime, uns finge e outros vive o crime.
Crime, crime, dizem quem cometemos crime.
Crime, crime, falar a verdade virou crime.
Crime, crime, amamos cometer esse crime.

Depois de apresentar a realidade e o dia conturbado do Jovem OG, Febem dá um passo atrás e lembra novamente do sonho. Questiona a ideia de que a vida do favelado é apenas o sofrimento, e apresenta na mesma realidade a sua diversão. Ouse questionar agora a moralidade da diversão do penitente. Agora sem CESRV e com o funk paulista de Kyan e Mu540, BALLA é uma celebração da cultura de baile, perfeitamente traduzida no jogo de palavras do refrão.

Acelera o trem bala.
Disfarce tá na bala.
Nos inimigo é bala.
Na boca elas quer bala.

No mesmo tema, em ÁREA DE RISCO, nosso protagonista chega no baile. Com a batida idílica que já nos acostumamos, combinando perfeitamente com a sensação do baile funk, Febem e as gêmeas Tasha e Tracie descrevem a noite etérea do Jovem OG. Aqui também aparece de volta o tema de que só o periférico entende de fato a periferia.

Cheguei no Lebay.
Demorei, no toque tava um braço,
Não sabia tocar em favela, mó cabaço.
Oh, oh, até mal me tratou,
Quando os predinho avistou,
Só porque me buscou
Na Faria Lima, foi pro Peri,
Achou que ia pra Santa Cecília.
Ele ficou em choque, mó fita,
Sabia que aqui o grave só não bate mais que a polícia?

E já que começamos a história do Jovem OG em JOVEM, nada mais justo que terminar em OG. Aqui, nosso protagonista volta para casa depois do baile e sonha tanto quanto sonhou em JOVEM, mas dessa vez não sonha com a vida que gostaria de ter, e sim com a vida que tem - através do real no sonho ao longo do álbum, Febem encontra o sonho no real. Finaliza-se, também, o tema que surgiu na segunda metade do álbum, em BALLA, que não trata o favelado como coitado e sua vida como miserável, mas sim que a mesma pessoa que passa perrengues pode estar feliz com a própria vida.

Um brinde a mim, a mim mesmo,
Que mudou tanto que continua o mesmo.
Ego, egoísmo, não achei o meio termo,
Além do mundo que vivemos, em comum nada temos. [...] Pra ter paz, ter terra, ter tempo,
Ter liberdade e brindá-la com vinho branco
E apagar da memória o sofrimento,
Só não preciso de dinheiro pra comprar respeito.

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A história terminou em OG, mas o álbum ainda tem mais uma faixa, ME PAGA. Ela funciona, sobretudo, como um epílogo. Aqui, o eu lírico não é mais o Jovem OG, e sim o próprio Febem.

Embicou ontem na viela e pediu selfie, disse "Moleque, cê é ref
Na festa que eu promovo e as mina que pede pra eu tocar.
Mas queria mesmo perguntar se é aqui que tá vendendo a braba."
Normal pra nóis boyzão, foda-se me paga.

ME PAGA é uma típica faixa diss elaborada, com a produção ainda perfeita mas em segundo plano e brilhando as barras de Febem e Djonga. Em um álbum que não apresenta julgamentos morais ou de conduta, Febem chega ao fim para se colocar na posição da pessoa que não deve ter decoro, com a frase foda-se, me paga, que não apresenta conduta mas sim a realidade, polvilhando a música inteira. Febem fazia parte do coletivo de rap Damassaclan, e saiu depois de diversas brigas que aconteceram. Ainda em RUNNING, Febem tem versos criticando o DMC, como vou lhe contar uma história de quem jogou na Europa e decidiu voltar pra várzea em FÉ DO JÓ.

"Temos uma proposta." Ok.
"O orçamento é baixo." Ok.
"Mas pensa no futuro." Ok.
"Evolua conosco." Ok.
"Que no próximo job você vai sair na capa."
Aham, legal, mas então... foda-se, me paga.

Depois da saída, alguns egressos e outras pessoas formaram a CENA, grupo de rap que não durou muito tempo mas contou com figuras como Djonga, que também passou por seus problemas em grupos de rap e por isso canta com Febem essa música.

Pensando em comprar mais um carro só pra passar o tempo.
Fiquei de reserva e não deixei de ser o melhor em campo.
Dobrei a aposta, porra, e tripliquei o faturamento.
Hoje é uma garrafa pra mim, outra pro santo.

OG é a abreviação de Original Gangsta. Surgiu ao início dos anos 90 como uma gíria para falar de alguém autêntico, raiz, influente, original. O Jovem OG pode contar tanto de um jovem que é OG quanto de um OG que é jovem. Em ambos os casos, temos uma pessoa que vive em seu sonho e sonha em sua vida. JOVEM OG é, sobretudo, uma obra dialética sobre um jovem periférico. Em apresentar a vida como ela é, apresenta ao ouvinte o questionamento de sua própria moralidade.

Com uma produção impecável que serve à música, participações especialíssimas, músicas que se conversam e letras intrincadas, Febem transporta o ouvinte para o seu sonho e apresenta um dos melhores álbuns do rap.