Discurso do Gustavo

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Discurso proferido pelo orador Gustavo Henrique Montesião de Sousa na formatura da Turma 12 do Curso de Ciências Moleculares, 10 de agosto de 2006.

Uma boa noite a todos!

Hoje é um dia muito especial para mim. E não é porque eu esteja encerrando uma fase importante de minha vida nem por qualquer coisa parecida com isso.

Esta noite é assim importante para mim por me permitir estar com meus amigos com quem passei esses últimos anos e que influenciaram tanto minha vida; por me permitir recordar esses momentos de convívio; por saber que hoje somos um só coração e nos alegraremos juntos.

Não sei ao certo como foi acontecer, mas esta turma possui qualquer coisa de diferente, de bonito; algo que foi surgindo devagar: esse sentimento de que a Turma 12 é maior que cada um de nós; de que a Turma 12 é uma, é a união de todos nós.

No começo não era assim. Era uma época de uma convivência talvez difícil, quando ainda não nos conhecíamos. Nossa união veio, sim, aos poucos: na quietude dos momentos em que nos distraíamos, ou na violência dos momentos em que nos revoltamos.

Há certas coisas que o CCM nos proporciona com mais intensidade que outros cursos: esse dividir espaços pequenos a cada momento, todos os dias; esse esbarrar com o outro a cada instante, a cada passo: todos esses acontecimentos tão assim: sorrateiramente, enquanto nossas cabeças se distraem compreocupações pequenas, sem nos darmos conta de que estamos ali, vivendo juntos, partilhando momentos e, distraídos, construindo nossa vida comum.

Distraídos.

Contudo, a Turma 12 foi moldada por mais do que esses instantes, pois carregamos as marcas de momentos que de modo nenhum puderam passar despercebidos. Momentos de dificuldades, momentos de tristeza.

Talvez este curso seja mesmo um parto. E se o for, se é verdade que este curso é um parto, então sofremos abortos. E a dor do aborto eu suponho muito, muito maior que a dor do parto.

A dor é um universo de encontros.

Foram nesses momentos que crescemos. Foi quando cada um de nós se descobriu maior que si próprio. Foi quando passamos a viver um pouco mais em função do outro.

Aos poucos aprendemos que o Curso de Ciências Moleculares, no fundo, é a imagem que fazem dele e entendemos que muito do que passamos aqui foi, na verdade, o peso de se manter tal imagem. Como se a Imagem fosse o Nada que é Tudo. E isso fosse suficiente para pagar todas as noites não dormidas, todos os sonhos desfeitos, nossas lágrimas choradas, os que adoecemos nesses anos e tudo o que deixamos de vivenciar enquanto nos dedicávamos a este Curso. Isso não me parece certo.

Não acredito, sinceramente não acredito que o CCM precise disso para manter seu espírito. Para mim, o que faz o Curso de Ciências Moleculares são o seu caráter multidisciplinar; as discussões profundas que temos chance de fazer e que não teríamos em outros lugares; o contato mais próximo com os professores; e não uma pretensa superioridade intelectual dos seus alunos.

A todos vocês ainda alunos aqui presentes: uma das lições mais fortes que nos ensinam quando entramos no curso é a temer o Tempo, que não tem misericórdia dos que não conseguem acompanhá-lo. Ensinam a necessidade de se fazer tudo logo, para que nos formemos logo, para virarmos doutores logo. Essa pressa toda por algum motivo pouco claro, talvez o de morrermos logo. E, devido à pressa, nós aceitamos tudo, sem nos questionar, como se devesse ser assim mesmo, como se não houvesse outra opção. Aceitamos que deva haver alunos dignos de freqüentar o Curso de Ciências Moleculares e outros indignos de o cursarem. Aceitamos como natural que os tais alunos indignos devam ser jubilados-desligados do curso. Aceitamos que nos julguem capazes através de números. Sim, de números, pois os que nos julgam não convivem conosco dia após dia para nos conhecerem: não sabem de nossas histórias, não sabem de nossos planos, não sabem o que fazemos. Sabem pouco mais do que as notas que tiramos. E assim vão nos reduzindo a números. E vão tecendo pedagogias caducas de cima de suas altitudes altíssimas.

Não aceitem tal mentalidade sem antes se questionarem. Fazer ciência não é matar um leão por dia para conquistar uma estrelinha de bom menino e colá-la na testa. Vocês não estão aqui, ou ao menos não deveriam estar, para serem os melhores da turma, nem para publicarem artigos em revistas famosas, nem para serem Pesquisadores de Nível A do CNPq ou qualquer outra bobagem dessas. Vocês estão aqui porque há um povo que precisa de vocês.

É estranho notar como ninguém nos lembra disso nesta Universidade. Somos educados para produzir, para fazer nosso nome. Ninguém nos lembra de que nosso compromisso é com o povo que nos sustenta, que paga nossos estudos e nossas pesquisas na esperança de que transformemos as coisas. E, no entanto, gastamos nosso tempo e o dinheiro deles com instrigas e politicagem, gastamos tudo tentando fazer nosso nome.

Precisamos nos conscientizar disto: aqui hoje somos mais do que nós mesmos: somos um povo! Não podemos aceitar menos do que isso de nossas vidas. Nosso papel é mais do que escrever artigos e fazer descobertas: é nossa responsabilidade criar uma identidade, algo em que nosso povo se reconheça e se sinta de fato um povo. Enquanto não fizermos isso, a Ciência no Brasil não será nada, independentemente do que os números digam.

Quem construirá a Ciência neste país a partir de agora seremos nós. Tenhamos a convicção de que podemos transformá-la, de que somos capazes, ou esses quatro anos não terão valido a pena.

Muito obrigado.

Arquivo em formato PDF

Links

Discurso de formatura de alguma turma do IFUSP - igualmente ácido.